terça-feira, 24 de dezembro de 2013

OS DILEMAS DE JEAN-PAUL SARTRE



Os jovens de hoje nem sequer lembram dele. Menos ainda associam sua figura a uma linha de pensamento existencialista, o que, aliás, o próprio filósofo punha em causa. Sartre (1905-1980) nasceu na região da Alsácia, fronteira entre França e Alemanha que era muito disputada por ambos os países. Ficou órfão muito pequeno e foi criado pelo avô e pela mãe. Quando chegou à idade escolar, a família deslocou-se para Paris, mas a esta altura da vida Sartre já possuía o domínio da leitura, da escrita e até se aventurava a construir composições como se fosse um escritor de verdade.
 Em Paris ele cursou o Liceu onde fez grandes amizades. Como sua mãe tivesse voltado a se casar e as relações dele com o padrasto eram ruins, os anos de internato lhe foram proveitosos. Assim, tendo saído do Liceu, foi estudar na École Normal, dirigindo-se à filosofia; teve como companheiros de turma Paul Nizan, Raymond Aron e outras pessoas que ocupariam lugar de importância na sua vida posterior.
 Ao fim da École Normal, passou a relacionar-se com Simone de Beauvoir, num pseudo casamento que ambos chamavam de essencial, ou seja, era uma ligação forte mas que admitia ligações paralelas e contingenciais para ambos, e assim mantiveram-se até a morte dele.













Quando Sartre foi feito prisioneiro pelos alemães na Segunda Guerra, foi mandado para um "Stalag" onde dividia o espaço com prisioneiros de todos os tipos, exceto os judeus. Havia lá um ou outro intelectual, padres, profissionais de comércio e um número grande de trabalhadores braçais. Todos vestiam roupas iguais, cumpriam a mesma disciplina e comiam a mesma comida. Este efeito equalizador que poderia ser infamante para um Zé Dirceu, não o foi para Sartre. De diferente, ele apenas juntou-se aos padres para discutir filosofia quando era possível.
 No mais, escrevia muito, pois Simone havia feito chegar a ele cadernos e lápis que os alemães não negaram entregar-lhe. Sartre era um homem feio. Tinha um estrabismo divergente que lhe tornara um olho inoperante; era baixinho, não passava de 1,58m e, para compensar essa feiúra que lhe era peculiar, praticou muita ginástica para ter músculos fortes, mas, no geral era uma figura bizarra.
 Assim, para viver bem no Stalag, fez-se de verdadeiro palhaço, brincava com todos ao tempo em que lhes percebia as dificuldades de serem prisioneiros. Com a aproximação do Natal, ele resolveu escrever uma peça onde todos deveriam participar.  O Auto-Natalino chamou-se "Bariona"e possuía todo um sentido metafórico que os alemães não compreenderam. Assim, eles autorizaram a peça e também forneceram algum material para enriquecer os cenários. Todos os prisioneiros tinham alguma coisa a fazer, desde os que deviam representar, os simples figurantes, aos que cuidariam dos cenários, da luz, enfim, para esta celebração Sartre não deixou ninguém esquecido. O resultado foi maravilhoso, e Sartre percebeu que precisava haver um mínimo de consciência social possível para que gente tão heterogênea se unisse e se emocionasse como de fato aconteceu. Os prisioneiros ficaram felizes, e Sartre, que era ateu até o último fio de cabelo, sentiu-se forte para voltar a escrever. A esta altura, já produzia sua trilogia "Os Caminhos da Liberdade", e entusiasmou-se também pela produção teatral que poderia vir a ter.
 Porém, sua estadia no Stalag estava com os dias contados. Por ser considerado de baixa periculosidade pois era apenas meteorologista do exército francês, ele ganhou a liberdade e pode voltar a Paris. E então descobriu o pior. A resistência francesa precisava da esquerda comunista para frutificar, mas essa era uma colcha de retalhos, uma casa de Maria Joana onde todos querem falar mas ninguém se entende. Alguns mais radicais chegaram a insinuar que Sartre era agora espião dos alemães, e ele ficou furioso com isso. Então, junto com alguns amigos, fez parte da resistência francesa ainda acreditando no princípio de socialismo e liberdade.








A resistência Francesa, ainda que multifacetada, lutou bravamente. Porém foi só com a entrada dos EUA na Segunda Guerra que o conflito teve fim. Foi uma guerra sangrenta e o povo europeu passou por grandes necessidades. Então, os EUA convidaram uma equipe de 8 jornalistas para visitar  a América.
Sartre, que junto com alguns companheiros fundara a revista "Les Temps Modernes", estava entre os convidados, mas, ao chegarem, os americanos descobriram que os 8 eram um bando de maltrapilhos que não podiam sequer ser colocados daquela forma na frente do público. Deram então um banho de loja nos jornalistas cuja função, para os EUA, era louvar o poder ianque como salvador da Europa. Depois, lavados, tratados, bem vestidos, falaram ao público e foram levados aos principais locais dos EUA para verem a "grande nação do progresso".
 Nada podia ser mais deletério a Sartre do que esta demonstração de poder. E Sartre, que via o mundo com apenas um olho (o outro era inútil) percebeu que estava diante de um país muito racista. A discriminação racial contra os negros ficava tão evidente que lhe causava mais náusea. Voltou à França onde escreveu peças de teatro, entre as quais, "A Prostituta Respeitosa", que denunciava a hipocrisia americana.
Sartre produzia muito. As idéias vinham-lhe à cabeça depressa demais, e para colocá-las no papel ele tomava anfetaminas para se manter desperto. Sua produção literária, bem como a de Simone de Beauvoir foi tão grande que ambos ganharam muito dinheiro com suas publicações . Em 1964 Sartre ganhou o prêmio Nobel de literatura, mas recusou-se a recebê-lo. Simone ganhou o prêmio Goncourt de literatura francesa. Mais pé no chão, comprou um apartamento e um carro com o dinheiro do prêmio. A essa altura, ambos viviam em casas distintas mesmo mantendo os laços afetivos. E Sartre era um desregrado, pois continuava a consumir corydrane e também bebidas alcoólicas. Dieta alimentar nenhuma, mesmo quando a idade foi avançando. Assim, dedicava-se aos países em libertação ou sub-desenvolvidos, chegando mesmo a fazer uma longa viagem ao Brasil, onde foi recepcionado por Jorge Amado, Niemeyer e o próprio presidente Juscelino. Seus livros eram leitura obrigatória aos brasileiros da época. E eram muitos. Filosofia pura, romances, peças de teatro, artigos de revista. Seu periódico Les Temps Modernes continuava a todo vapor. O último dilema de Sartre aconteceu cinco anos antes de sua morte. Ficou cego do olho que lhe restava, então, seus derradeiros escritos foram ditados a secretários e à sua companheira Simone, juntos há meio século. Seu enterro foi seguido por 50000 pessoas e aconteceu no cemitério de Montparnase, em 1980. Sartre deixou o exemplo da eterna inquietação. Mas deixou aberta para as futuras gerações, qual é na verdade entre um regime justo, com menos desigualdade social, porém mantendo as liberdades existenciais, isto é, individuais.









 
Assim também ele deixou o legado da liberdade ao Brasil. Em 1969 publicou no "Les Temps Modernes" um extenso dossiê sobre a ditadura assassina que entã
o havia aqui. Sou saudosa dele.

 

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