Os jovens de hoje nem sequer lembram dele. Menos
ainda associam sua figura a uma linha de pensamento existencialista, o que,
aliás, o próprio filósofo punha em causa. Sartre (1905-1980) nasceu na região
da Alsácia, fronteira entre França e Alemanha que era muito disputada por ambos
os países. Ficou órfão muito pequeno e foi criado pelo avô e pela mãe. Quando
chegou à idade escolar, a família deslocou-se para Paris, mas a esta altura da
vida Sartre já possuía o domínio da leitura, da escrita e até se aventurava a
construir composições como se fosse um escritor de verdade.
Em Paris ele cursou
o Liceu onde fez grandes amizades. Como sua mãe tivesse voltado a se casar e as
relações dele com o padrasto eram ruins, os anos de internato lhe foram
proveitosos. Assim, tendo saído do Liceu, foi estudar na École Normal,
dirigindo-se à filosofia; teve como companheiros de turma Paul Nizan, Raymond
Aron e outras pessoas que ocupariam lugar de importância na sua vida posterior.
Ao fim da École Normal, passou a relacionar-se com Simone de Beauvoir, num
pseudo casamento que ambos chamavam de essencial, ou seja, era uma ligação
forte mas que admitia ligações paralelas e contingenciais para ambos, e assim
mantiveram-se até a morte dele.
Quando Sartre foi feito prisioneiro pelos alemães na
Segunda Guerra, foi mandado para um "Stalag" onde dividia o espaço
com prisioneiros de todos os tipos, exceto os judeus. Havia lá um ou outro
intelectual, padres, profissionais de comércio e um número grande de
trabalhadores braçais. Todos vestiam roupas iguais, cumpriam a mesma disciplina
e comiam a mesma comida. Este efeito equalizador que poderia ser infamante para
um Zé Dirceu, não o foi para Sartre. De diferente, ele apenas juntou-se aos
padres para discutir filosofia quando era possível.
No mais, escrevia muito,
pois Simone havia feito chegar a ele cadernos e lápis que os alemães não
negaram entregar-lhe. Sartre era um homem feio. Tinha um estrabismo divergente
que lhe tornara um olho inoperante; era baixinho, não passava de 1,58m e, para
compensar essa feiúra que lhe era peculiar, praticou muita ginástica para ter
músculos fortes, mas, no geral era uma figura bizarra.
Assim, para viver bem no
Stalag, fez-se de verdadeiro palhaço, brincava com todos ao tempo em que lhes
percebia as dificuldades de serem prisioneiros. Com a aproximação do Natal, ele
resolveu escrever uma peça onde todos deveriam participar. O Auto-Natalino chamou-se "Bariona"e
possuía todo um sentido metafórico que os alemães não compreenderam. Assim,
eles autorizaram a peça e também forneceram algum material para enriquecer os
cenários. Todos os prisioneiros tinham alguma coisa a fazer, desde os que
deviam representar, os simples figurantes, aos que cuidariam dos cenários, da
luz, enfim, para esta celebração Sartre não deixou ninguém esquecido. O
resultado foi maravilhoso, e Sartre percebeu que precisava haver um mínimo de
consciência social possível para que gente tão heterogênea se unisse e se emocionasse
como de fato aconteceu. Os prisioneiros ficaram felizes, e Sartre, que era ateu
até o último fio de cabelo, sentiu-se forte para voltar a escrever. A esta
altura, já produzia sua trilogia "Os Caminhos da Liberdade", e
entusiasmou-se também pela produção teatral que poderia vir a ter.
Porém, sua
estadia no Stalag estava com os dias contados. Por ser considerado de baixa
periculosidade pois era apenas meteorologista do exército francês, ele ganhou a
liberdade e pode voltar a Paris. E então descobriu o pior. A resistência
francesa precisava da esquerda comunista para frutificar, mas essa era uma
colcha de retalhos, uma casa de Maria Joana onde todos querem falar mas ninguém
se entende. Alguns mais radicais chegaram a insinuar que Sartre era agora espião
dos alemães, e ele ficou furioso com isso. Então, junto com alguns amigos, fez
parte da resistência francesa ainda acreditando no princípio de socialismo e
liberdade.
A resistência Francesa,
ainda que multifacetada, lutou bravamente. Porém foi só com a entrada dos EUA
na Segunda Guerra que o conflito teve fim. Foi uma guerra sangrenta e o povo
europeu passou por grandes necessidades. Então, os EUA convidaram uma equipe de
8 jornalistas para visitar a América.
Sartre, que junto com alguns companheiros fundara a revista "Les Temps
Modernes", estava entre os convidados, mas, ao chegarem, os americanos
descobriram que os 8 eram um bando de maltrapilhos que não podiam sequer ser
colocados daquela forma na frente do público. Deram então um banho de loja nos
jornalistas cuja função, para os EUA, era louvar o poder ianque como salvador
da Europa. Depois, lavados, tratados, bem vestidos, falaram ao público e foram
levados aos principais locais dos EUA para verem a "grande nação do
progresso".
Nada podia ser mais deletério a Sartre do que esta
demonstração de poder. E Sartre, que via o mundo com apenas um olho (o outro
era inútil) percebeu que estava diante de um país muito racista. A discriminação
racial contra os negros ficava tão evidente que lhe causava mais náusea. Voltou
à França onde escreveu peças de teatro, entre as quais, "A Prostituta
Respeitosa", que denunciava a hipocrisia americana.
Sartre produzia muito.
As idéias vinham-lhe à cabeça depressa demais, e para colocá-las no papel ele
tomava anfetaminas para se manter desperto. Sua produção literária, bem como a
de Simone de Beauvoir foi tão grande que ambos ganharam muito dinheiro com suas
publicações . Em 1964 Sartre ganhou o prêmio Nobel de literatura, mas
recusou-se a recebê-lo. Simone ganhou o prêmio Goncourt de literatura francesa.
Mais pé no chão, comprou um apartamento e um carro com o dinheiro do prêmio. A
essa altura, ambos viviam em casas distintas mesmo mantendo os laços afetivos.
E Sartre era um desregrado, pois continuava a consumir corydrane e também
bebidas alcoólicas. Dieta alimentar nenhuma, mesmo quando a idade foi
avançando. Assim, dedicava-se aos países em libertação ou sub-desenvolvidos,
chegando mesmo a fazer uma longa viagem ao Brasil, onde foi recepcionado por
Jorge Amado, Niemeyer e o próprio presidente Juscelino. Seus livros eram
leitura obrigatória aos brasileiros da época. E eram muitos. Filosofia pura,
romances, peças de teatro, artigos de revista. Seu periódico Les Temps Modernes
continuava a todo vapor. O último dilema de Sartre aconteceu cinco anos antes
de sua morte. Ficou cego do olho que lhe restava, então, seus derradeiros
escritos foram ditados a secretários e à sua companheira Simone, juntos há meio
século. Seu enterro foi seguido por 50000 pessoas e aconteceu no cemitério de
Montparnase, em 1980. Sartre deixou o exemplo da eterna inquietação. Mas deixou aberta para as futuras gerações, qual é na verdade entre um regime justo, com menos desigualdade social, porém mantendo as liberdades existenciais, isto é, individuais.
Assim também ele deixou o legado da liberdade ao Brasil. Em 1969 publicou no "Les Temps Modernes" um extenso dossiê sobre a ditadura assassina que entã
o havia aqui. Sou saudosa dele.