segunda-feira, 17 de setembro de 2012

DE VOLTA ÀS ORIGENS

 Desde que Eva comeu a maçã e fez Adão cooptar com seu pecado, todas, inclusive eu, fomos destinadas a sangrar todo mês e a parir nossos filhos com dor. Mas a cosmogonia judaico-cristã não deixou bem claro quem deveria tutelar nossa inteligência. Isso porque talvez estivesse implícito nas escrituras que o homem era sempre o detentor do saber. Mas eu queria as mesmas armas dos machos da espécie. Também mordi da maçã e senti seu gosto maravilhoso.E, daí por diante, minha cabeça passou a aprender coisas direcionadas por incríveis demônios tutelares.

Tive vários demônios tutelares. O mais incrível deles foi um professor da faculdade que possuía uma especial aversão às normas de funcionamento da instituição. Ele chamava-se Pedro Moacyr Campos, e posso dizer sem medo que ele foi um dos demônios tutelares mais fortes sobre a minha cabeça, ou seja, ensinou-me a pensar de verdade. É claro que antes deles alguns homens já haviam me dito coisas importantes: para um namorado que tive no primeiro ano da faculdade, eu só seria uma mulher de verdade quando tivesse lido Marx direito. Confesso que, por aqueles anos eu li apenas o Manifesto Comunista, as Teses contra Feuerbach, além de uns excertos do Capital, permanecendo incompleta. Por outro lado, meu pai me dizia que eu só seria uma mulher completa quando fosse mãe. Fui mãe três vezes, mas dos benditos frutos do meu ventre, um morreu e os outros adquiriram estrela própria. Agora, voltando ao Pedro Moacyr, ele não tinha nenhuma destas verdades prontas e absurdas.

Era um homem baixo que tinha uma risada avassaladora. Gostei dele e ele de mim. Nossa turma era dividida: Havia os que o temiam pelas críticas terríveis, e havia os que viam nisso a altura do seu saber. Entre as críticas mordazes, vi uma que foi definitiva para a vida de uma moça: era uma japonesa linda, que no seminário só falou bobagens. Ele então olhou para ela e limitou-se a dizer:”Que pena. E é tão bonita!”. A moça abandonou a faculdade e fez um casamento com homem próspero.

Tinha sido amigo pessoal de Hermann Hesse, havia lecionado no Japão e na Alemanha, tinha uma postura absolutamente existencial frente à vida e, me conclamava a ler Mishima, Hesse e outros. Quando conclui o curso, resolvi fazer pós graduação tendo-o como orientador. Porém naquele mesmo ano de 1969, comecei a ter uma série de problemas políticos, e até 1973 fui presa várias vezes. E ele me protegeu o quanto pode.

Pedro tinha uma idéia fixa na cabeça. Dizia que, “quando sua curva de decadência pessoal se iniciasse, ele poria fim à vida”. Achávamos que era um mero jogo de cena. Algum tempo depois, seu filho único faleceu. Fui à missa de sétimo dia e ele estava lá, imperturbável. Ao me ver, pegou-me pela mão e disse: Vamos fugir daqui que eu não suporto essas conversas com o deus numero um. Saí com ele. Olhou-me frontalmente e disse: “ Estou quites com a poluição demográfica”...Retorqui: “De modo algum. E o que você deixa para mim e meus colegas? Então, é um homem que só acredita na continuidade do plasma germinativo?”... e ele sério, respondeu: “Vira essa boca para lá!”.

Pois foi assim. Em 1977, aos 57 anos de idade, por princípio, ingeriu uma capsula de cianureto.E quanto a mim, devo a ele minha total abertura à erudição. Sou medievalista, como ele foi, e a mim, todas as portas se abrem.

Observação: Por conta das prisões políticas e mudança de orientador após a morte de Pedro, defendi meu doutorado em 15 de maio de 1985, na Universidade de São Paulo, e depois fui, por concurso de Provas e Títulos, Professora e orientadora de História Medieval na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Meus discípulos, portanto, são netos do Pedro Moacyr Campos, meu querido demônio tutelar.

3 comentários:

Anônimo disse...

Oi Karamiga, não me xingue mas eu vou fazer um reparo: Pedro Moacyr morreu em setembro de 1976; quem morreu em 1977 foi o Eurípedes. Abraços do K.

Anônimo disse...

Foi ato falho. Acho que eu gostaria muito que ele vivesse mais.E qualquer ora vou falar de outros demonios tutelares da minha formação. Um beijo da K.

Júlio Paiva disse...

Ora, ele morreu não morreu, então qual é a discussão? O tempo, para um demônio tanto faz, mas tutelar aí requer as maldades burocráticas do pensamento, com carimbos, registros, e assinaturas dos médios medievais, ora vá, que trocadilho besta, o importante é minha professora de francês que me ensinou sem tutelar. (Risos)agora vá.