sábado, 28 de junho de 2008

REFLEXÕES SOBRE A PATERNIDADE

REFLEXÕES SOBRE A PATERNIDADE, OU, A NOSTALGIA DO PARAISO PERDIDO

Se vivo fosse, meu pai completaria 97 anos de idade. Quis a boa sorte que vivesse até os 91, e que eu dispusesse de uma deliciosa cumplicidade consigo durante 56 anos de minha vida. Ele era um homem muito simples, conhecedor das coisas da terra, hábil plantador do chão, humilde de origem, autodidata de formação. Vinda da terrinha mãe portuguesa, a família se aquietou nesse Brasil, comprou terras, fez horta, criou ampla filharada, sobreviveu à gripe espanhola, mas o casal teve morte precoce, deixando meu pai, aos 10 anos, completamente órfão e sem o cuidado dos irmãos mais velhos. Nem por isso virou um rebelde malvado. Nesta idade, tinha juízo para estar com pessoas boas, e muito cedo foi aquilo que hoje pejorativamente classifica-se como mão de obra infantil.Trabalhou para comer e dormir; em 1932 tinha carta de motorista e alistou-se para defender a causa constitucionalista de São Paulo, foi ao campo de batalha e retornou em bom estado para ajudar a reerguer a moral paulistana. Aos 28 anos, casou-se com uma foragida dos Balcãs e, aos 35, tornou-se meu pai.
Como se julgava incompetente para ajudar aos meus irmãos e a mim na escola, consultava-se com os amigos sobre os livros que deveria nos comprar. Comprou muitos, e nos conduziu pela trilha de uma cultura que a ele o destino negara. Soube aplacar minha mãe nos momentos da neura total, jamais surrou um filho, mas tinha sobre nós uma autoridade que não carecia de palavras, apenas de olhares.
Em 1985, vestiu-se bonito e foi assistir minha defesa de doutorado. Tinha um orgulho das minhas conquistas porque naturalmente se entendia como parte delas. Amava as crianças e dizia que o mundo podia ser “salvo” pelas gerações futuras; jamais censurou a maternidade de mães solteiras, desconheceu preconceito racial, abominou as guerras e valorizou o trabalho como redentor das pessoas e das sociedades. Internado, no último dia de sua vida, alertou-me que estava morrendo. Confirmei. Depois cantei para ele. Cantigas de ninar. Cantei embargada até perder a voz. Embalei-o até que adormeceu...
Ivone

Nenhum comentário: