segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

O CÔMICO NOSSO DE CADA DIA

O CÔMICO NOSSO DE CADA DIA

Umberto Eco, um dos meus demônios tutelares, avalia em uma obra sua o escritor Campanile, num artigo intitulado “O cômico como estranhamento”. Lá pelas tantas, conta um episódio de visita de banhistas a uma praia da Itália do Norte que, ao saírem da água doidos de fome, vão a um restaurante local onde o cozinheiro bate estupidamente a cabeça de um polvo contra a parede. É assim que se matam os polvos, mas o dono pretendia tão somente dar aos banhistas uma demonstração de que servia peixes realmente frescos. O inusitado fica por conta do destino do polvo. Tão logo todos entram no restaurante, o animal era devolvido a um tanque marítimo de onde só sairia no dia seguinte para ser submetido a uma nova sessão de pancadaria. Esse polvo vivia muito, até já se acostumara à tortura diária. No início, chegava a fugir para a cozinha pensando no suicida gesto de ser frito por engano. Agora, o sofrimento tornara-se a marca dos seus dias, tanto quanto os turistas imaginavam que os peixes eram pescados por lá mesmo. Além disso, nada lhe faltava, porque, para mantê-lo vivo, era muito bem alimentado. Queria apenas morrer, o que era improvável, ou então esperar a surra do dia seguinte para confirmar o frescor do pescado que, aliás, vinha de um mercado de Milão.
Esta narrativa de pânico e humor, foi talvez a primeira que Eco leu em seus jovens anos, e, se lhe calou fundo, a ele que sobreviveu à Segunda Guerra Mundial, é porque seguramente entende do gênero humano melhor do que muitos outros.
Temos todo o direito de nos identificar com o polvo de Campanile e Eco, porque vivemos uma situação bastante similar. A pancada nossa de cada dia serve ao mercado mundial que nos imagina frescos e prontos para um achatamento servil, sem direito a reclamos. No fim do dia vamos para os apês da vida assistir na televisão que o mundo é bom, felicidade existe. Dormir. Sonhar, talvez. Acordar, e voltar às porradas que, segundo a ideologia cristã, nos salvarão. Campanile não era cômico, nem Eco. Cômicos somos nós que suspeitamos ter força e não conseguimos fritar nossos cozinheiros.

Um comentário:

Anônimo disse...

Acho que gostei desse blog! rs estou lendo um texto depois do outro. Veja bem: vc tem um talento enorme para saculejar as emoções do leitor... então o que mais posso dizer? obrigado!

alex