segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

FELINOS

FELINOS

Gosto de gatos. Não me lembro de uma única época da vida em que eles não estivessem presentes em minha casa. Neste momento são três a me alegrar. Tenho a Kika, cujo nome homenageia Almodóvar, meu cineasta favorito. Ao filho de Kika dei o nome de Gabo, um agrado ao gênio literário de Gabriel Garcia Marques. O mais velho deles, um gatão amarelo que pesa oito quilos, foi registrado como Puk, em lembrança ao duende atrapalhado dos Sonhos de uma noite de Verão, do Shakespeare.
Até bem pouco tempo eu era uma solitária felinófila, e muitas vezes tinha que escutar pessoas dizendo que os gatos são amigos da casa, e não do dono; falavam também de traição e vida vadia, como se os animais só fossem viáveis na natureza pela sua funcionalidade.
De fato, o cristianismo não privilegiou estes animais. Na Idade Média, era comum emparedar-se gatinhos nas construções para o azar não cair sobre os moradores. Apenas os Egípcios creditaram aos gatos um poder especial. Eles cultuavam a deusa Bastet que era uma gentil felina do tipo dos nossos siameses, e que foi retratada com belas crias e em todos os tipos de material artístico.
Mas afinal, porque o cristianismo recusou conceder ao gato um status mais digno?
Você trabalhador, dona de casa, aposentado, estudante, seja lá o que for, já ouviu falar de liberdade? Você tem liberdade plena? Pode dar-se ao luxo de só fazer o que quer, dizer o que pensa? Claro que não. A pressão da sociedade é tal sobre o indivíduo, que ele jamais gozará de uma liberdade irrestrita. Tudo porque liberdade, para os humanos, vem atrelada à idéia de responsabilidade.
É aqui que entra a rejeição aos gatos:- os humanos, que tem na cabeça o problema da liberdade muito mal resolvido, sentem no gato o espelho de algo que eles jamais alcançarão. Preferem os cachorros, cordatos, servís e obedientes, aparentemente funcionais porque agridem sob as ordens do dono. Tudo a ver. Depois desta triste constatação, só nos resta lembrar o jargão publicitário: Bonita camisa, Fernandinho!

O CÔMICO NOSSO DE CADA DIA

O CÔMICO NOSSO DE CADA DIA

Umberto Eco, um dos meus demônios tutelares, avalia em uma obra sua o escritor Campanile, num artigo intitulado “O cômico como estranhamento”. Lá pelas tantas, conta um episódio de visita de banhistas a uma praia da Itália do Norte que, ao saírem da água doidos de fome, vão a um restaurante local onde o cozinheiro bate estupidamente a cabeça de um polvo contra a parede. É assim que se matam os polvos, mas o dono pretendia tão somente dar aos banhistas uma demonstração de que servia peixes realmente frescos. O inusitado fica por conta do destino do polvo. Tão logo todos entram no restaurante, o animal era devolvido a um tanque marítimo de onde só sairia no dia seguinte para ser submetido a uma nova sessão de pancadaria. Esse polvo vivia muito, até já se acostumara à tortura diária. No início, chegava a fugir para a cozinha pensando no suicida gesto de ser frito por engano. Agora, o sofrimento tornara-se a marca dos seus dias, tanto quanto os turistas imaginavam que os peixes eram pescados por lá mesmo. Além disso, nada lhe faltava, porque, para mantê-lo vivo, era muito bem alimentado. Queria apenas morrer, o que era improvável, ou então esperar a surra do dia seguinte para confirmar o frescor do pescado que, aliás, vinha de um mercado de Milão.
Esta narrativa de pânico e humor, foi talvez a primeira que Eco leu em seus jovens anos, e, se lhe calou fundo, a ele que sobreviveu à Segunda Guerra Mundial, é porque seguramente entende do gênero humano melhor do que muitos outros.
Temos todo o direito de nos identificar com o polvo de Campanile e Eco, porque vivemos uma situação bastante similar. A pancada nossa de cada dia serve ao mercado mundial que nos imagina frescos e prontos para um achatamento servil, sem direito a reclamos. No fim do dia vamos para os apês da vida assistir na televisão que o mundo é bom, felicidade existe. Dormir. Sonhar, talvez. Acordar, e voltar às porradas que, segundo a ideologia cristã, nos salvarão. Campanile não era cômico, nem Eco. Cômicos somos nós que suspeitamos ter força e não conseguimos fritar nossos cozinheiros.