terça-feira, 23 de outubro de 2007

ACORRENTADOS

ACORRENTADOS

Quando eu lecionava na Universidade Federal do Rio de Janeiro, leve-se em conta que as coisas por lá ainda não estavam tão barra pesada como hoje, havia no ar um medo de assalto, medo da ação dos trombadinhas e trombadões das ruas e avenidas centrais, tal como hoje. Para minha alegria, minha estada por lá foi de vários anos e, jamais, em situação nenhuma, fui alvo de qualquer violência humana. Vi coisas hilariantes por aquele centro antigo. Certo dia, cheguei às 6:00 da manhã perto do Paço Imperial, com o fito de mostrar à minha filha adolescente as igrejas da região. As ruas estavam quase vazias, e passamos por um botequim onde um morador de rua tomava um pingado com pão e manteiga. Quando acabou seu desjejum, o homem procurou um guardanapo. Não encontrou, então pegou o gato que andava por ali e limpou sua boca nos pelos das costas do gato. Surrealista? Talvez. É certo contudo que o gato foi-lhe cordial, muito embora se sentisse incomodado pela sujeira e se pusesse a lamber os pelinhos como fazem os felinos quando tomam banho. De outra feita, eu estava ultimando meus assuntos no Rio porque ia passar uma temporada de pesquisa na Europa. Andava com rapidez pelo mesmo centro antigo, quando uma pomba defecou pontualmente em meu ombro. Precisei não só esperar o comércio abrir, como também dar as duas primeiras aulas da manhã absolutamente cagada. Meus alunos riram comigo, depois me ajudaram a comprar uma roupa limpa para voltar a São Paulo naquela tarde.
Naquela época, os meninos das favelas gostavam de surfar no alto dos vagões de trem. Vez ou outra, um deles caía, ou então era eletrocutado ao bater nos fios de alta tensão que acompanhavam no alto o caminho da via férrea. A polícia ferroviária vivia atrás destes garotos para que o pior não acontecesse, e entre os meninos, havia algumas garotas igualmente traquinas. Se caiam nas mãos dos policiais, levavam uns puxões de orelha e eram conduzidos a um lugar onde aguardavam ser resgatados pelos pais. Mais ou menos como a carrocinha de cachorros. Entre todos, havia uma crioulinha atrevida de 13 ou 14 anos, que reincidia constantemente, deixando a mãe e os guardas exasperados. Uma vez, a molecada surfava sobre os vagões quando uma menina foi eletrocutada, e virou um carvãozinho tão horrível, que até os guardas choraram pela menina. Agora, era hora de contar à mãe dela. Foram até sua casinha, pobre, sem reboque, sem janelas, fechadas com tábuas de madeira velha. Bateram. A mãe veio abrir, e o mais corajoso dos guardas foi logo dizendo: Bem que a gente avisou. Ela era muito danada. Morreu de choque nos fios elétricos do alto... A mãe não esboçou um traço de sofrimento. Limitou-se a convidá-los para dentro, ofereceu café. Só então falou: Oi aqui, oceis tão fazeno a sua tarefa i eu to fazeno a minha. Vem cá vê.
Os guardas passaram pela porta dos fundos e viram: a negrinha estava lavando roupa num tanque e tinha nos pés uma corrente com cadeado que a prendia no pilar do tanque. A mãe então disse: Oceis tem agora um trabaio maió: vão tê qui achá o dono do defunto.
Conto esta lembrança para lembrar ao povo que cuida da criança e do adolescente, que cada um defende os seus como sabe ou como pode. Vai ser difícil a qualquer um dizer que esta mãe não amava a filha. Assim também o avô dos dias de hoje que não queria o neto na rua com os outros moleques, e só soltava o garoto para ir à escola. Quem pode julgar estes adultos numa época em que tememos até crianças que já delinqüem sob ordens de adultos?

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