O Corpo como elemento de exclusão
“O Corpo é a gaiola da Alma”. Foi este o sentimento que inspirou a religiosidade do homem cristão da Baixa Idade Média. Maltratar o corpo podia ser um bom exercício de ascese, mas o próprio São Francisco que, na passagem do século XII ao XIII pregara a pobreza como opção e se tornou figura emblemática da negação do corpo e da matéria, recomendava que não houvesse excessos de auto-flagelo por parte de seus seguidores, pois o caminho da elevação espiritual poderia estar severamente comprometido, em função do comprometimento da própria vida. Ele mesmo tentava domesticar seus sentimentos, negava a fartura, a tentação da carne e, ao fim da vida, conforme relatam os cronistas que lhe foram contemporâneos, atingira um grau de autocontrole tão significativo que consentira lhe fizessem no rosto uma cauterização de grande porte, sem qualquer droga analgésica.
Os biógrafos coetâneos de Francisco, centrados em sua figura, deixaram entrever nas entrelinhas de seus escritos que sociedade era aquela, onde os vestígios feudais conviviam lado a lado com uma mentalidade de comércio e de reurbanização do mundo europeu. Se o ambiente rural conservava ainda os liames de homem para homem, nas cidades os ofícios se organizavam, os comerciantes transitavam com desenvoltura recuperando as velhas rotas de comércio estagnadas desde o fim do Império Romano. Porém, estas cidades que se oxigenavam ao sabor da emergente burguesia, confrontavam-se desde cedo com os “diferentes”, aqueles que, para além do comportamento genérico de cidadãos, feriam o sentido tanto moral quanto estético ou sanitário da ordem. Assim, as ruas tornaram-se domínio não só das pessoas comuns, como também das minorias que ali estavam presentes, umas para praticar profissões consideradas vís, ainda que toleradas, outras para mendigar, outras para praticar atos “perigosos”.
O segmento destes excluídos que nos interessa, é exatamente aquele dos que, ao contrário de Francisco, ao invés de usar o corpo para enaltecer o espírito, tiveram o corpo considerado como fardo responsável, ainda que em graus diferentes, por sua estigmatização. Referimo-nos aqui às prostitutas, aos homossexuais e aos leprosos, os primeiros acusados de fazer mau uso do corpo pela sociedade da época, os últimos vistos como produto do castigo que Deus.
A prostituição medieval foi testemunhada por um conjunto de fontes primárias muito diversificadas. Os sermonários eclesiásticos encaravam o comércio do sexo de maneira moralista, mas na prática, entendiam-no como necessário. Embora pudessem exercer seus ofícios com significativa complacência e, mesmo o ambiente das igrejas não lhes fosse negado , as prostitutas constituíam parte do universo dos indivíduos cujo corpo era o elemento fundamental de exclusão ou de estigmatização.
A prostituição floresceu na Europa desde os tempos de maior ruralismo. Por volta do início do segundo milênio, grupos de mulheres itineravam pelos caminhos em busca de pontos de peregrinação, de feiras, de festas populares, porque os ajuntamentos humanos eram garantia de sua sobrevivência. Os padres viam na atuação destas mulheres uma espécie de segurança às senhoras e às virgens casadoiras, futuras mães de família.
Estudos especializados buscam traçar referências da ação destas mulheres. É inegável o componente da carência social em sua origem, pois se prostituíam via de regra as mais pobres, as abandonadas, as que haviam sido seduzidas por algum patrão inescrupuloso. Fonte primária digna de nota, é o poema do marginal François Villon (séc.XV), que em certa estrofe chora: “ Honestas foram verdadeiramente, sem merecer censura ou repreensão. É verdade que, ao começar ardente, antes de ser de má reputação, cada uma tomou por diversão ou um leigo, ou um clérigo ou um monge, para extinguir as chamas da paixão...”
Raras eram as senhoras de ordem privilegiada que se prostituíam. No entanto, a juventude masculina mostrava comportamento de extrema violência para com as mulheres. Jovens cidadãos juntavam-se em grupos numerosos e conduziam freqüentemente o rapto e a violação de mulheres mal defendidas pela sorte. Os documentos policiais da época são exíguos a respeito, porque, por medo ou vergonha, muitas estupradas não prestavam queixa às autoridades. Analisando demograficamente as famílias de então, os historiadores constataram que os casamentos dos homens aconteciam tardiamente. Até então, eles agrupavam-se e provocavam tais abusos que as autoridades também relevavam, dadas as origens de muitos deles. Neste contexto urbano, os prostíbulos ganharam importância especial, pois funcionavam como elementos mediadores de tensões e conflitos. As mulheres que exerciam o metier nas casas públicas eram controladas pelas autoridades e, sua profissão estava basicamente regulamentada como qualquer outra. Prestavam compromisso aos cônsules ou autoridades citadinas, discutiam seus preços e rendimentos, impostos, modo de exercer o ofício, horários de trabalho, direitos, enfim, tudo o que dizia respeito ao seu papel de tranqüilizadoras de machos brigões, tanto da comunidade como comerciantes estrangeiros.Assim, o sexo pago se tornou uma verdadeira instituição de paz.
Rossiaud, estudioso do tema, sugere que as prostitutas eram, de certa forma, menos excluídas que as senhoras de família. Aponta que as condenações de algumas delas aconteceram mais por questões políticas (elas sabiam de tudo, tiravam todas as informações que queriam de seus clientes) do que pelo moralismo da época. Efetivamente, documentos policiais nos conduzem à mesma conclusão, ou seja, precisavam cometer uma grave quebra de confiabilidade do sistema para ter contra si punições. Pagava-se com a vida furtar alguns florins de comerciante italiano, bania-se aquela que arriscasse politicamente a segurança da cidade onde se prostituía... As senhoras de família apenas procriavam, enquanto os homens, jovens, casados, monges, enfim, de todas as variedades, freqüentavam as animadas casas ( algumas mais sofisticadas, as saunas ), de acordo dos costumes da época. Um padre fornicador em prostíbulo era mais aceito pela comunidade que um concubinado, e a Igreja fazia vista grossa porque entendia o deslize de maneira ambígua, ou seja, um ato sexual isolado não comprometeria os bens materiais da Igreja, como uma família a quem ele devesse sustentar.
As prostitutas, apesar de necessárias à comunidade de então, eram portadoras dos signos da infâmia. Diferenciadas das demais mulheres, vestiam-se com roupas marcadas a fim de serem reconhecidas como tais.Além disso, o regulamento de muitas cidades impedia que suas casas tivessem portas ou janelas voltadas para as calçadas principais. Se os traços de repressão da Idade Média não foram suficientes para coibir a vida dos prostíbulos, isto se deve ao fato de que o mundo da marginalidade vive em simbiose com a sociedade oficial. No fim do período medieval, a Igreja perdera o controle da vida destas mulheres que, então, haviam se atrelado às autoridades burguesas das cidades. No entanto, no advento da modernidade, as prostitutas foram alvo de mais ataques, produzidos pela intolerância tanto dos Protestantes austeros, como dos Contra-reformistas em seu processo de reavaliação das instituições sociais e religiosas. O “mal necessário”, designativo que até os tempos contemporâneos recebeu a profissão destas mulheres, conheceu pois, durante a Idade Média, um nível de exclusão menos radical do que em tempos posteriores. As prostitutas tinham na sociedade medieval um papel, e seu desempenho, de certa forma as atrelava com mais consistência ao sistema, pois o mundo oficial não podia abrir mão delas, eficientes mediadoras da questão moral do período e das fortes tensões daí advindas.
Os homossexuais ocupam um lugar diferente na história das minorias . De princípio, praticavam o pecado “ contra natura”, eram sodomitas. O uso do corpo é tão implícito como elemento de exclusão como no caso das prostitutas, porém, elas mesmas contavam em sua regulamentação profissional com o direito de negar ao cliente práticas sexuais contrárias ao que era aceito socialmente (há processos nos arquivos europeus que partiram de queixas de mulheres cujos clientes pleiteavam sexo anal). Por outro lado, os atos de exclusão dos sodomitas homossexuais culminavam, em certos casos, com a pena de morte na fogueira. Mas isso não significa que, naqueles tempos da Baixa Idade Média, houvesse uma consciência de que estes indivíduos formavam uma evidente ameaça social, como os hereges, por exemplo, ou tivessem uma ação decisiva ainda que ambígua, como era o caso das prostitutas, até porque seus atos eram quase sempre silenciosos.
A guisa de esclarecimento, é suficiente lembrar que a palavra homossexual, híbrida de grego e latim, só apareceu na Europa do século XIX. Assim, para a Idade Média, basta-nos considerar que, no primeiro milênio, pouco se fala deste comportamento diferenciado. Havia ainda uma herança clássica a propósito de relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo, até uma certa tolerância apesar de algumas condenações eclesiásticas esparsas. É certo que o discurso da castidade estabelecido desde as epístolas de Paulo, atingiam velhos hábitos que para os romanos eram absolutamente naturais, porém Paulo defendia a castidade como um todo, subestimando qualquer relação, mesmo heterossexual, que não objetivasse a procriação. Foi somente após as primeiras invasões bárbaras que os exegetas passaram a tocar na questão da sodomia, no entanto, esta palavra dizia respeito, não exatamente ao que conhecemos hoje como homossexualismo, e sim, a qualquer relação sexual fora dos padrões aceitos pela Igreja. Isto compreendia, por exemplo, um coito entre homem e mulher, em que o intercurso, mesmo sendo vaginal, ocorresse numa posição diferente.
Embora considerassem que havia relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo, tanto a Igreja como os precários pensadores da área médica de então, reconheciam ainda a existência de “efeminados” e “viragos”, mas não os relacionavam ao pecado da “sodomia”, senão através do curioso pensamento de que estes últimos eram produto das relações sodomitas de seus pais. Além disso, a História Medieval revela, através de seus cronistas, que relações entre pessoas do mesmo sexo aconteciam com freqüência nos meios mais abastados e nobres. Assim, é famoso o caso de Ricardo Coração de Leão, que manteve um relacionamento estreito com o chefe de seus soldados mercenários; na mesma Inglaterra, o rei Eduardo II, foi vítima de uma conspiração , mais por motivo de usurpação do trono do que por seus hábitos sexuais diferenciados. Ricardo não deixou filhos, no entanto, Eduardo tinha sucessor e era pai de família, como qualquer nobre romano que na antiguidade distante estabelecia uma família procriadora, sem impedimentos para o exercício do sexo entre iguais.
Os principais autores que tratam de sexualidade na Idade Média, entre eles Boswell, Jacquart e Thomasset, demonstram que a intolerância para com os homossexuais tornou-se dramática a partir da Baixa Idade Média, ou seja, a partir do reflorescimento da vida urbana e do realinhamento social da Europa. A perseguição a estas minorias inscreve-se portanto no mesmo painel das intolerâncias que levaram à perseguição de judeus, hereges e, até mesmo, leprosos – perseguição essa que não atinge, por razões obvias, as prostitutas. Boswell discute em suas teses que a intolerância contra os homossexuais não poderia se prender a fatores de risco, eles não representavam perigo para a sociedade, como era o caso dos contaminadores leprosos. As mutações da sociedade nos séculos finais da Idade Média, colocavam as pessoas dentro de um quadro de insegurança. Quebrara-se o esquema da trifuncionalidade social a partir dos avanços da burguesia; as concentrações urbanas e uma nova competitividade formavam o pano de fundo de uma sociedade inquieta, tensa, desconfiada de tudo o que pudesse ser diferente. Assim, a Igreja oferecia, apesar dos seus precários argumentos, material para considerar o caráter imoral da vida dos sodomitas, muitas vezes ocultos dentro do tecido social e partícipes das mais respeitáveis instituições. De fato, a sodomia enquanto paixão homossexual, era mais freqüente onde havia maiores reuniões de pessoas do mesmo sexo. É o caso dos mosteiros e conventos. Mas a documentação é precária para tratar da incidência e deve ser compulsada com cautela. Poder-se-ia alegar atos impuros, comportamentos desregrados para expulsar as pessoas de uma terra, como aconteceu com as freirinhas do convento de Heloisa (a eterna namorada de Abelardo), cujas terras foram expropriadas por ordem do abade de Saint Denis , sob alegação de “desmandos comportamentais” das mesmas.
O corpo foi elemento de exclusão da maneira mais dramática, no entanto, no caso dos leprosos. Qualquer dermatose podia ser confundida com esta doença, porém, o surto epidêmico tornou-se evidente a partir do século XII, quando a concentração demográfica nas cidades e a micro-dimensão das moradias facilitou os contágios. Um leproso deveria de princípio ser diagnosticado por um grupo de pretensos conhecedores da doença. Caso o resultado fosse positivo, o paciente era expulso da cidade. Em vários locais, procedia-se mesmo a um sepultamento simbólico, isto é, deitava-se o doente no chão e, jogava-se sobre ele algumas pás de terra. Se o leproso fosse possuidor de bens, poderia ser internado num leprosário dos muitos que apareceram na Europa. Lá, estaria sujeito aos estatutos da casa, controlada por provedores, muitas vezes ávidos de riquezas, pois estes estabelecimentos recebiam dotes de pacientes, de testamentos reais, e podiam esmolar a vontade. No entanto, se pobre fosse, o doente seria um miserável itinerante, portador dos signos da infâmia, pois os leprosos eram considerados objeto do castigo de Deus, por pecados sexuais cometidos pelos pais ou por si próprios. Constituiriam um risco ao próximo porque, além de tudo, a doença era considerada venérea e, em fases avançadas, provocava no doente o priapismo, mal de razões desconhecidas para a época, mas que evocava luxúria.
A história da lepra evidencia um aspecto interessante do universo marginal. Assim como o mundo cristão medieval apropriou-se dessa desgraça para poder manifestar seu exercício de caridade, a comunidade dos doentes organizou-se para sobreviver. Pediam esmolas e estratificavam-se socialmente mimetizando a sociedade oficial. Assim, entre eles criavam-se situações de tensão e conflitos que opunham leprosos ricos a leprosos pobres, e a luta de classes entre eles manifestava-se na constrangedora disputa dos pontos vantajosos nos arredores das cidades, para a obtenção da esmola, que lhes vinha de pessoas de corpo saudável, contudo ansiosas na busca da salvação da própria alma.