terça-feira, 30 de outubro de 2007

Júlio Lanceloti e a extorsão

Julio Lanceloti e a extorsão
Não morro de amores pela Igreja Católica. Sei de seus desmandos da Alta Idade Média até os dias de hoje. O papa é um representante inquisitorial.
Mas, dentro da Igreja Católica há pessoas muito boas. Eu poderia citar dezenas delas, só considerandoo ambiente periférico em que habito.
Li na última semana, todas as culpas que atribuiram ao Padre Lanceloti. Não o conheço pessoalmente, embora gostasse de fazê-lo. Ele se apresentou à polícia dizendo-se vítima de extorsões por parte de um ex-interno e seus comparsas. Tímido, começou falando em 50, depois 60, depois em somas maiores que para a polícia já beiram os 600 mil reais. O medo dele era ser acusado de pedofilia. Retraiu-se e jogou a causa nas mãos do Greenhald, o mesmo advogado que insistia que a morte do Celso Daniel foi crime comum.
Ora, existem muitas variantes a serem consideradas. Um homem extorquido, não deve ter medo de falar a verdade. Teoricamente, nem precisa de advogado.
Mas os autores da extorsão tem um passado de merda. Vejamos por partes:
Um adolescente delinquente de 16 ou 17 anos, ainda não sabe o que é sexo? Claro que sim. Sabe tudo e algo mais. Não me parece portanto que este perfil possa-o encaixa-lo na linha dos ingênuos abusados por adultos.
O caso durou anos, até que a bruaca velha decidiu envolver em denúncias seu moleque de 8 anos. Temos aí um caso clássico de uma fêmea que não quer dividir seu macho com ninguém, e por isso arma um golpe do qual poderá talvez aumentar seus proventos.
Nada sei sobre a sexualidade do padre. Se ele for casto, estará nas normas da Igreja. Se sodomita, é bom saber que isso não implica em agressão ao direito civil. Além disso, me parece pouco lógico que um homem tão ocupado com moradores de rua e crianças aidéticas, tivesse tempo para tantas aventuras. Uma cá, outra lá, é até possível, mas não temos provas e há suspeitas de manipulação do processo para desviar as atenções do caso dodelegado e seus traficantes de estimação.
Não defendo nem ataco Lanceloti. Se teve na vida um amor bandido, isto é caso para ser decidido pelo Direito Canônico. Os tribunais de Roma cuidam de seus pastores no tocante ao comportamento eclesiástico.
Quanto aos delinquentes, nem as boas intenções ou paixões de Lanceloti ajudaram em nada, e ,estes sim, devem ser julgados pela justiça civil, suas vidas precisam ser pesquisadas para saber a quem mais golpearam.
Mesmo que o Papa resolva punir o sacerdote, o Papa não é ninguém para dizer a quem devemos respeitar. Igreja e Estado neste país, são entidades autônomas, graças aos Céus.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Orham Pamuk

Orham Pamuk
O prêmio Nobel de Literatura de 2006 foi dele. Turco, nascido e criado em Istambul (antiga Constantinopla), esse autor de pouco mais de 50 anos tem tres obras traduzidas para o Português. Neve, Meu Nome é Vermelho e Istambul.
A Turquia é um país islâmico que até pouco tempo não tinha posições radicais religiosas. O Estado era e ainda é(não se sabe até quando) separado da religião. Dentro de um liberalismo maior, Pamuk foi criado em Istambul e sempre viveu lá. Suas obras, contudo, vem revelando que a liberdade começa a ser gradativamente censurada pelo rigorismo religioso. Em Neve, ele aborda o caso de garotas que querem assistir às aulas em escolas públicas, portando o véu da submissão feminina. Algumas se suicidam quando contrariadas pelo diretor da escola leiga. Pamuk constroi um romance sobre a permanência de tres dias de um homem que foi à região pois nascera lá. Esses três dias são repletos de fatos que se contrapõe a cada minuto como um suspense comum. O livro é rico e sério.
Mais rico de informações por tratar de miniaturistas que enfeitam textos religiosos, é Meu Nome é Vermelho. Novo suspense criado pelo assassinato de um Mestre de Iluminuras, ele vê o assassinato pelo ângulo de todos os partícipes da nobre arte de escrever e iluminar. Livro belíssimo, coloca o leitor a par de uma cultura distante, a do Próximo Oriente, e de uma religião diferente, a do Islã.
Em Istambul, todavia, Pamuk se supera. O livro se apresenta como autobiográfico. No entanto, Pamuk não se imagina sem Istambul, sem o Bósforo, e, ao contar sua infância e juventude, a história de sua família, ele disseca o sentimento de HUZM, um tipo de melancolia, de nostalgia do paraíso perdido, uma tristesse romântica, dentro da qual vivem os moradores de Istambul,entre ruinas de um passado soberbo e dezenas e dezenas de minaretes, expostos cuidadosamente em sequencias fotográficas ou desenhos de viajantes do século XIX. O livro é soberbo, uma declaração de amor à cidade.
Orham Pamuk mora hoje fora de Istambul. Sua segurança foi comprometida com ameaças que sofreu após ter admitido que a Turquia, de fato, praticou um genocídio contra os armênios em 1915.
Leia Pamuk. Coisa de gente que tem sentimentos nobres.

Impaciência

Impaciência

Com duas ou tres semanas de uma novela, os telespectadores já se acham críticos ferozes de enredos que mal conhecem e de artistas que interpretam fora de padrões "escandalosos". Assim, o público resolveu gritar contra o realismo do Aguinaldo Silva e contra a interpretação de Marjorie, que faz a moça que caiu no golpe do baú. Felini, em sua profícua carreira desabafou certa vez dizendo que a televisão é responsável pela criação de espectadores impacientes. Dessa fala dele eu depreendo que os alunos são espectadores impacientes de seus professores, e que os telespectadores querem também novelas que definam seu curso desde o primeiro momento. Não suportam um trabalho introdutório que dê suporte e nexo aos argumentos do autor. Isso explica também a baixa tolerância que a sociedade brasileira tem para ler textos maiores e mais elaborados. Imediatismo, impaciência, analfabetismo funcional, preconceito, individualismo, são vícios que moram no mesmo caldeirão de bruxas. Deixem o Aguinaldo Silva desenrolar sua trama com a consistência de sempre. Deixem a garota "não perua" trabalhar em paz e construir sua personagem. Mas que todos pensem: Enquanto não se lidar com esse vício cultural do imediatismo e da impaciência, será difícil erguer a cultura nacional. As pessoas não poderão viver de signos rápidos e curtas mensagens. Seu raciocínio ficará embotado e elas serão presa fácil de qualquer curto discurso de má fé.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Isabel Allende

Isabel Allende

Chega às livrarias seu último livro LA SUMA DE LOS DÍAS, ainda sem tradução ao português.

A obra é um bom convite ao treino da lingua espanhola. Parece um hino de celebração à vida, construida a partir de narrativas sobre a vida californiana da autora, com o humor eternamente voltado ao bizarro de qualquer família. Quando sair a tradução, o leitor que compreende a língua original da obra, com certeza perceberá o quanto se perde da musicalidade típica do falar hispânico. Mas terá acesso à contraposição cultural do modelo de família norte americana frente ao nosso modelo familiar latino, o modelo da galinha que quer ter junto e sob as asas todos os seus pintainhos. Vale a pena conferir.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

O Corpo como Elemento de Exclusão

O Corpo como elemento de exclusão

“O Corpo é a gaiola da Alma”. Foi este o sentimento que inspirou a religiosidade do homem cristão da Baixa Idade Média. Maltratar o corpo podia ser um bom exercício de ascese, mas o próprio São Francisco que, na passagem do século XII ao XIII pregara a pobreza como opção e se tornou figura emblemática da negação do corpo e da matéria, recomendava que não houvesse excessos de auto-flagelo por parte de seus seguidores, pois o caminho da elevação espiritual poderia estar severamente comprometido, em função do comprometimento da própria vida. Ele mesmo tentava domesticar seus sentimentos, negava a fartura, a tentação da carne e, ao fim da vida, conforme relatam os cronistas que lhe foram contemporâneos, atingira um grau de autocontrole tão significativo que consentira lhe fizessem no rosto uma cauterização de grande porte, sem qualquer droga analgésica.
Os biógrafos coetâneos de Francisco, centrados em sua figura, deixaram entrever nas entrelinhas de seus escritos que sociedade era aquela, onde os vestígios feudais conviviam lado a lado com uma mentalidade de comércio e de reurbanização do mundo europeu. Se o ambiente rural conservava ainda os liames de homem para homem, nas cidades os ofícios se organizavam, os comerciantes transitavam com desenvoltura recuperando as velhas rotas de comércio estagnadas desde o fim do Império Romano. Porém, estas cidades que se oxigenavam ao sabor da emergente burguesia, confrontavam-se desde cedo com os “diferentes”, aqueles que, para além do comportamento genérico de cidadãos, feriam o sentido tanto moral quanto estético ou sanitário da ordem. Assim, as ruas tornaram-se domínio não só das pessoas comuns, como também das minorias que ali estavam presentes, umas para praticar profissões consideradas vís, ainda que toleradas, outras para mendigar, outras para praticar atos “perigosos”.
O segmento destes excluídos que nos interessa, é exatamente aquele dos que, ao contrário de Francisco, ao invés de usar o corpo para enaltecer o espírito, tiveram o corpo considerado como fardo responsável, ainda que em graus diferentes, por sua estigmatização. Referimo-nos aqui às prostitutas, aos homossexuais e aos leprosos, os primeiros acusados de fazer mau uso do corpo pela sociedade da época, os últimos vistos como produto do castigo que Deus.
A prostituição medieval foi testemunhada por um conjunto de fontes primárias muito diversificadas. Os sermonários eclesiásticos encaravam o comércio do sexo de maneira moralista, mas na prática, entendiam-no como necessário. Embora pudessem exercer seus ofícios com significativa complacência e, mesmo o ambiente das igrejas não lhes fosse negado , as prostitutas constituíam parte do universo dos indivíduos cujo corpo era o elemento fundamental de exclusão ou de estigmatização.
A prostituição floresceu na Europa desde os tempos de maior ruralismo. Por volta do início do segundo milênio, grupos de mulheres itineravam pelos caminhos em busca de pontos de peregrinação, de feiras, de festas populares, porque os ajuntamentos humanos eram garantia de sua sobrevivência. Os padres viam na atuação destas mulheres uma espécie de segurança às senhoras e às virgens casadoiras, futuras mães de família.
Estudos especializados buscam traçar referências da ação destas mulheres. É inegável o componente da carência social em sua origem, pois se prostituíam via de regra as mais pobres, as abandonadas, as que haviam sido seduzidas por algum patrão inescrupuloso. Fonte primária digna de nota, é o poema do marginal François Villon (séc.XV), que em certa estrofe chora: “ Honestas foram verdadeiramente, sem merecer censura ou repreensão. É verdade que, ao começar ardente, antes de ser de má reputação, cada uma tomou por diversão ou um leigo, ou um clérigo ou um monge, para extinguir as chamas da paixão...”
Raras eram as senhoras de ordem privilegiada que se prostituíam. No entanto, a juventude masculina mostrava comportamento de extrema violência para com as mulheres. Jovens cidadãos juntavam-se em grupos numerosos e conduziam freqüentemente o rapto e a violação de mulheres mal defendidas pela sorte. Os documentos policiais da época são exíguos a respeito, porque, por medo ou vergonha, muitas estupradas não prestavam queixa às autoridades. Analisando demograficamente as famílias de então, os historiadores constataram que os casamentos dos homens aconteciam tardiamente. Até então, eles agrupavam-se e provocavam tais abusos que as autoridades também relevavam, dadas as origens de muitos deles. Neste contexto urbano, os prostíbulos ganharam importância especial, pois funcionavam como elementos mediadores de tensões e conflitos. As mulheres que exerciam o metier nas casas públicas eram controladas pelas autoridades e, sua profissão estava basicamente regulamentada como qualquer outra. Prestavam compromisso aos cônsules ou autoridades citadinas, discutiam seus preços e rendimentos, impostos, modo de exercer o ofício, horários de trabalho, direitos, enfim, tudo o que dizia respeito ao seu papel de tranqüilizadoras de machos brigões, tanto da comunidade como comerciantes estrangeiros.Assim, o sexo pago se tornou uma verdadeira instituição de paz.
Rossiaud, estudioso do tema, sugere que as prostitutas eram, de certa forma, menos excluídas que as senhoras de família. Aponta que as condenações de algumas delas aconteceram mais por questões políticas (elas sabiam de tudo, tiravam todas as informações que queriam de seus clientes) do que pelo moralismo da época. Efetivamente, documentos policiais nos conduzem à mesma conclusão, ou seja, precisavam cometer uma grave quebra de confiabilidade do sistema para ter contra si punições. Pagava-se com a vida furtar alguns florins de comerciante italiano, bania-se aquela que arriscasse politicamente a segurança da cidade onde se prostituía... As senhoras de família apenas procriavam, enquanto os homens, jovens, casados, monges, enfim, de todas as variedades, freqüentavam as animadas casas ( algumas mais sofisticadas, as saunas ), de acordo dos costumes da época. Um padre fornicador em prostíbulo era mais aceito pela comunidade que um concubinado, e a Igreja fazia vista grossa porque entendia o deslize de maneira ambígua, ou seja, um ato sexual isolado não comprometeria os bens materiais da Igreja, como uma família a quem ele devesse sustentar.
As prostitutas, apesar de necessárias à comunidade de então, eram portadoras dos signos da infâmia. Diferenciadas das demais mulheres, vestiam-se com roupas marcadas a fim de serem reconhecidas como tais.Além disso, o regulamento de muitas cidades impedia que suas casas tivessem portas ou janelas voltadas para as calçadas principais. Se os traços de repressão da Idade Média não foram suficientes para coibir a vida dos prostíbulos, isto se deve ao fato de que o mundo da marginalidade vive em simbiose com a sociedade oficial. No fim do período medieval, a Igreja perdera o controle da vida destas mulheres que, então, haviam se atrelado às autoridades burguesas das cidades. No entanto, no advento da modernidade, as prostitutas foram alvo de mais ataques, produzidos pela intolerância tanto dos Protestantes austeros, como dos Contra-reformistas em seu processo de reavaliação das instituições sociais e religiosas. O “mal necessário”, designativo que até os tempos contemporâneos recebeu a profissão destas mulheres, conheceu pois, durante a Idade Média, um nível de exclusão menos radical do que em tempos posteriores. As prostitutas tinham na sociedade medieval um papel, e seu desempenho, de certa forma as atrelava com mais consistência ao sistema, pois o mundo oficial não podia abrir mão delas, eficientes mediadoras da questão moral do período e das fortes tensões daí advindas.
Os homossexuais ocupam um lugar diferente na história das minorias . De princípio, praticavam o pecado “ contra natura”, eram sodomitas. O uso do corpo é tão implícito como elemento de exclusão como no caso das prostitutas, porém, elas mesmas contavam em sua regulamentação profissional com o direito de negar ao cliente práticas sexuais contrárias ao que era aceito socialmente (há processos nos arquivos europeus que partiram de queixas de mulheres cujos clientes pleiteavam sexo anal). Por outro lado, os atos de exclusão dos sodomitas homossexuais culminavam, em certos casos, com a pena de morte na fogueira. Mas isso não significa que, naqueles tempos da Baixa Idade Média, houvesse uma consciência de que estes indivíduos formavam uma evidente ameaça social, como os hereges, por exemplo, ou tivessem uma ação decisiva ainda que ambígua, como era o caso das prostitutas, até porque seus atos eram quase sempre silenciosos.
A guisa de esclarecimento, é suficiente lembrar que a palavra homossexual, híbrida de grego e latim, só apareceu na Europa do século XIX. Assim, para a Idade Média, basta-nos considerar que, no primeiro milênio, pouco se fala deste comportamento diferenciado. Havia ainda uma herança clássica a propósito de relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo, até uma certa tolerância apesar de algumas condenações eclesiásticas esparsas. É certo que o discurso da castidade estabelecido desde as epístolas de Paulo, atingiam velhos hábitos que para os romanos eram absolutamente naturais, porém Paulo defendia a castidade como um todo, subestimando qualquer relação, mesmo heterossexual, que não objetivasse a procriação. Foi somente após as primeiras invasões bárbaras que os exegetas passaram a tocar na questão da sodomia, no entanto, esta palavra dizia respeito, não exatamente ao que conhecemos hoje como homossexualismo, e sim, a qualquer relação sexual fora dos padrões aceitos pela Igreja. Isto compreendia, por exemplo, um coito entre homem e mulher, em que o intercurso, mesmo sendo vaginal, ocorresse numa posição diferente.
Embora considerassem que havia relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo, tanto a Igreja como os precários pensadores da área médica de então, reconheciam ainda a existência de “efeminados” e “viragos”, mas não os relacionavam ao pecado da “sodomia”, senão através do curioso pensamento de que estes últimos eram produto das relações sodomitas de seus pais. Além disso, a História Medieval revela, através de seus cronistas, que relações entre pessoas do mesmo sexo aconteciam com freqüência nos meios mais abastados e nobres. Assim, é famoso o caso de Ricardo Coração de Leão, que manteve um relacionamento estreito com o chefe de seus soldados mercenários; na mesma Inglaterra, o rei Eduardo II, foi vítima de uma conspiração , mais por motivo de usurpação do trono do que por seus hábitos sexuais diferenciados. Ricardo não deixou filhos, no entanto, Eduardo tinha sucessor e era pai de família, como qualquer nobre romano que na antiguidade distante estabelecia uma família procriadora, sem impedimentos para o exercício do sexo entre iguais.
Os principais autores que tratam de sexualidade na Idade Média, entre eles Boswell, Jacquart e Thomasset, demonstram que a intolerância para com os homossexuais tornou-se dramática a partir da Baixa Idade Média, ou seja, a partir do reflorescimento da vida urbana e do realinhamento social da Europa. A perseguição a estas minorias inscreve-se portanto no mesmo painel das intolerâncias que levaram à perseguição de judeus, hereges e, até mesmo, leprosos – perseguição essa que não atinge, por razões obvias, as prostitutas. Boswell discute em suas teses que a intolerância contra os homossexuais não poderia se prender a fatores de risco, eles não representavam perigo para a sociedade, como era o caso dos contaminadores leprosos. As mutações da sociedade nos séculos finais da Idade Média, colocavam as pessoas dentro de um quadro de insegurança. Quebrara-se o esquema da trifuncionalidade social a partir dos avanços da burguesia; as concentrações urbanas e uma nova competitividade formavam o pano de fundo de uma sociedade inquieta, tensa, desconfiada de tudo o que pudesse ser diferente. Assim, a Igreja oferecia, apesar dos seus precários argumentos, material para considerar o caráter imoral da vida dos sodomitas, muitas vezes ocultos dentro do tecido social e partícipes das mais respeitáveis instituições. De fato, a sodomia enquanto paixão homossexual, era mais freqüente onde havia maiores reuniões de pessoas do mesmo sexo. É o caso dos mosteiros e conventos. Mas a documentação é precária para tratar da incidência e deve ser compulsada com cautela. Poder-se-ia alegar atos impuros, comportamentos desregrados para expulsar as pessoas de uma terra, como aconteceu com as freirinhas do convento de Heloisa (a eterna namorada de Abelardo), cujas terras foram expropriadas por ordem do abade de Saint Denis , sob alegação de “desmandos comportamentais” das mesmas.
O corpo foi elemento de exclusão da maneira mais dramática, no entanto, no caso dos leprosos. Qualquer dermatose podia ser confundida com esta doença, porém, o surto epidêmico tornou-se evidente a partir do século XII, quando a concentração demográfica nas cidades e a micro-dimensão das moradias facilitou os contágios. Um leproso deveria de princípio ser diagnosticado por um grupo de pretensos conhecedores da doença. Caso o resultado fosse positivo, o paciente era expulso da cidade. Em vários locais, procedia-se mesmo a um sepultamento simbólico, isto é, deitava-se o doente no chão e, jogava-se sobre ele algumas pás de terra. Se o leproso fosse possuidor de bens, poderia ser internado num leprosário dos muitos que apareceram na Europa. Lá, estaria sujeito aos estatutos da casa, controlada por provedores, muitas vezes ávidos de riquezas, pois estes estabelecimentos recebiam dotes de pacientes, de testamentos reais, e podiam esmolar a vontade. No entanto, se pobre fosse, o doente seria um miserável itinerante, portador dos signos da infâmia, pois os leprosos eram considerados objeto do castigo de Deus, por pecados sexuais cometidos pelos pais ou por si próprios. Constituiriam um risco ao próximo porque, além de tudo, a doença era considerada venérea e, em fases avançadas, provocava no doente o priapismo, mal de razões desconhecidas para a época, mas que evocava luxúria.
A história da lepra evidencia um aspecto interessante do universo marginal. Assim como o mundo cristão medieval apropriou-se dessa desgraça para poder manifestar seu exercício de caridade, a comunidade dos doentes organizou-se para sobreviver. Pediam esmolas e estratificavam-se socialmente mimetizando a sociedade oficial. Assim, entre eles criavam-se situações de tensão e conflitos que opunham leprosos ricos a leprosos pobres, e a luta de classes entre eles manifestava-se na constrangedora disputa dos pontos vantajosos nos arredores das cidades, para a obtenção da esmola, que lhes vinha de pessoas de corpo saudável, contudo ansiosas na busca da salvação da própria alma.


ACORRENTADOS

ACORRENTADOS

Quando eu lecionava na Universidade Federal do Rio de Janeiro, leve-se em conta que as coisas por lá ainda não estavam tão barra pesada como hoje, havia no ar um medo de assalto, medo da ação dos trombadinhas e trombadões das ruas e avenidas centrais, tal como hoje. Para minha alegria, minha estada por lá foi de vários anos e, jamais, em situação nenhuma, fui alvo de qualquer violência humana. Vi coisas hilariantes por aquele centro antigo. Certo dia, cheguei às 6:00 da manhã perto do Paço Imperial, com o fito de mostrar à minha filha adolescente as igrejas da região. As ruas estavam quase vazias, e passamos por um botequim onde um morador de rua tomava um pingado com pão e manteiga. Quando acabou seu desjejum, o homem procurou um guardanapo. Não encontrou, então pegou o gato que andava por ali e limpou sua boca nos pelos das costas do gato. Surrealista? Talvez. É certo contudo que o gato foi-lhe cordial, muito embora se sentisse incomodado pela sujeira e se pusesse a lamber os pelinhos como fazem os felinos quando tomam banho. De outra feita, eu estava ultimando meus assuntos no Rio porque ia passar uma temporada de pesquisa na Europa. Andava com rapidez pelo mesmo centro antigo, quando uma pomba defecou pontualmente em meu ombro. Precisei não só esperar o comércio abrir, como também dar as duas primeiras aulas da manhã absolutamente cagada. Meus alunos riram comigo, depois me ajudaram a comprar uma roupa limpa para voltar a São Paulo naquela tarde.
Naquela época, os meninos das favelas gostavam de surfar no alto dos vagões de trem. Vez ou outra, um deles caía, ou então era eletrocutado ao bater nos fios de alta tensão que acompanhavam no alto o caminho da via férrea. A polícia ferroviária vivia atrás destes garotos para que o pior não acontecesse, e entre os meninos, havia algumas garotas igualmente traquinas. Se caiam nas mãos dos policiais, levavam uns puxões de orelha e eram conduzidos a um lugar onde aguardavam ser resgatados pelos pais. Mais ou menos como a carrocinha de cachorros. Entre todos, havia uma crioulinha atrevida de 13 ou 14 anos, que reincidia constantemente, deixando a mãe e os guardas exasperados. Uma vez, a molecada surfava sobre os vagões quando uma menina foi eletrocutada, e virou um carvãozinho tão horrível, que até os guardas choraram pela menina. Agora, era hora de contar à mãe dela. Foram até sua casinha, pobre, sem reboque, sem janelas, fechadas com tábuas de madeira velha. Bateram. A mãe veio abrir, e o mais corajoso dos guardas foi logo dizendo: Bem que a gente avisou. Ela era muito danada. Morreu de choque nos fios elétricos do alto... A mãe não esboçou um traço de sofrimento. Limitou-se a convidá-los para dentro, ofereceu café. Só então falou: Oi aqui, oceis tão fazeno a sua tarefa i eu to fazeno a minha. Vem cá vê.
Os guardas passaram pela porta dos fundos e viram: a negrinha estava lavando roupa num tanque e tinha nos pés uma corrente com cadeado que a prendia no pilar do tanque. A mãe então disse: Oceis tem agora um trabaio maió: vão tê qui achá o dono do defunto.
Conto esta lembrança para lembrar ao povo que cuida da criança e do adolescente, que cada um defende os seus como sabe ou como pode. Vai ser difícil a qualquer um dizer que esta mãe não amava a filha. Assim também o avô dos dias de hoje que não queria o neto na rua com os outros moleques, e só soltava o garoto para ir à escola. Quem pode julgar estes adultos numa época em que tememos até crianças que já delinqüem sob ordens de adultos?

Chão

CHÃO

Quando eu era menina, meu pai plantou no quintal de casa uma horta enorme apenas com salsinha. Sua predileção se explicava pelo fato de ele adorar fazer um aperitivo à base de azeite, aliche e muita salsinha picada. Só de lembrar, minhas glândulas salivares trabalham mais. Eu era muito pequena, de modo que ficava no meio do salseiro cujo vigor cobria-me as pernas até a altura dos quadris. E eu me orgulhava daquela selva particular. Minha mãe, por outro lado, entendia estes hábitos lusitanos um tanto bárbaros, e assim, no dia de reis ela fazia Sonhos, recheados de creme. Em outra época, parava a cozinha para abrir a finíssima massa do apfelstrudell, que depois, mal saía do forno, voava direto para nossas barrigas infantis.Tudo que podia vinha do quintal. As frutas, as carnes de ave, os legumes, as verduras, os ovos; também o quintal era o nosso parque de diversão.Nós subíamos nas árvores, corríamos atrás dos cachorros, andávamos de bicicleta, fazíamos bonecos de barro ou de espiga, assistíamos ao parto das cadelas, os pintinhos bicarem os ovos. Construíamos nossos próprios brinquedos, caso contrário, bordávamos e fazíamos tricô, principalmente no inverno e nos dias de chuva. No feriado de São João o mastro se erguia. Meu pai, sempre este gigante, juntava todos os galhos das podas, e montava uma fogueira. Trazia rojões, balõezinhos japoneses, minha mãe fazia bolo de fubá e nós não íamos para a cama enquanto o fogo não apagasse.Naquele tempo, meu pai não falava da derrotada revolução de 32. Minha mãe tentava esquecer os cadáveres que boiavam rio abaixo em frente à sua casa na distante Iuguslávia. Que havia lá no fundo uma forte dor reprimida, eu pressentia e hoje sei por que eles abriram as comportas das suas emoções. Foi só na velhice, nos tempos dos olhos baços e das palavras trôpegas. Que pena que houve tão pouco tempo para consolá-los. Mas, assim mesmo, entrecortando os silêncios, eles diziam: Não faz mal. Passou. Bendito seja esse nosso chão.Ainda durmo sobre os travesseiros vindos do além mar. Dos gansinhos que não vi nascer.